Ética e compromisso: a inspiradora história de uma bioquímica boliviana que deseja transformar a pesquisa

Em aldeias indígenas da floresta amazônica, em vilarejos panamenhos e em comunidades brasileiras, a ciência já se esqueceu de ouvir. Sangue coletado sem permissão, vacinas testadas sem explicar os riscos, estudos realizados em línguas que ninguém traduzia. Durante décadas, a pesquisa avançou às custas dos mais vulneráveis, deixando cicatrizes profundas.
Desses abusos nasceu uma convicção: a bioética não pode ser um luxo acadêmico, mas sim a bússola indispensável para que a ciência respeite a dignidade humana. Hoje, programas internacionais formam uma nova geração de pesquisadores que carregam essa lição. Dailyn Llanos Agno, bolsista do NIHR LATAM, é parte deles.
“Meu interesse pela bioética nasceu das pesquisas que realizava durante minha formação. Na Bolívia, esse campo ainda é muito frágil, mas os docentes que me orientaram despertaram em mim a necessidade de tornar visíveis os problemas éticos que quase não se discutem”, conta Dailyn, bioquímica farmacêutica boliviana, formada na Universidade Franz Tamayo (Unifranz).
A oportunidade surgiu graças a um programa financiado pelo Instituto Nacional para Pesquisa e Atenção em Saúde (NIHR), que nasce do trabalho conjunto entre universidades da região e da Europa. Liderado pela Queen Mary University of London; na Bolívia, pela Unifranz; na Colômbia, pela Pontificia Universidad Javeriana; e na Guatemala, pela Universidad Rafael Landívar, o NIHR LATAM busca avançar em pesquisas sérias, éticas e de ponta para a região.
Abrir janelas e romper barreiras
Para Dailyn, o programa do NIHR LATAM não foi apenas um impulso acadêmico, mas a confirmação de que a ciência pode ser uma ponte entre mundos. O que Dailyn encontrou foi um laboratório de ideias, um espaço onde ética e pesquisa dialogam sem fronteiras.
“O que me motivou foi a excelência do projeto, sua capacidade de focar nos problemas que enfrentamos na América Latina e, sobretudo, nas populações vulneráveis. Isso me inspirou a me envolver plenamente na pesquisa ética”, lembra.
Sua dissertação de mestrado reflete essa motivação: uma investigação sobre considerações éticas em comunidades indígenas da América Latina, tema sobre o qual quase não existe bibliografia.
“De 50 artigos revisados, apenas três ou quatro mencionam a ética em comunidades indígenas. Isso demonstra o pouco interesse dado ao tema. A bioética pode abrir portas para garantir autonomia, justiça e respeito nesses estudos”, sublinha.
Um programa com efeito multiplicador
Na Javeriana, os coordenadores do programa sabem que não se trata apenas de apoiar trajetórias individuais, mas de semear capacidades coletivas.
“As colaborações sempre atuam como multiplicadores”, explica Adriana Buitrago-López, professora e pesquisadora da Faculdade de Medicina da Pontificia Universidad Javeriana e coordenadora do programa de fortalecimento de capacidades do NIHR LATAM.
“O programa combina os recursos internacionais do NIHR, a experiência acadêmica e científica de nossas instituições e o conhecimento local e regional. Assim, formamos pesquisadores com capacidades técnicas e éticas sólidas, capazes de produzir evidências relevantes para nossos países latino-americanos”, afirma.
O modelo se apoia em intercâmbios e projetos multicêntricos que buscam algo além de publicações: trata-se de construir redes sustentáveis e fortalecer a cultura de pesquisa na região.
“Queremos que mais pessoas se formem integralmente e tenham capacidade crítica para produzir e consumir pesquisa contextualizada, que oriente decisões em saúde em seus ambientes”, acrescenta Buitrago.
O compromisso do NIHR: ciência para transformar
Se tivesse que escolher um aprendizado central de sua passagem pela Colômbia, Dailyn o resume em uma palavra: generosidade.
“O que mais me impactou foi a forma como professores e colegas compartilham conhecimento sem egoísmo. Se não sabem algo, ajudam a investigar mais, acompanham na busca. Isso me marcou profundamente, porque em nossa região às vezes falta essa cultura de compartilhar sem mesquinharia”, assegura.
O NIHR LATAM e seus aliados — incluindo a Javeriana na Colômbia — buscam exatamente isso: formar cientistas que não se limitem a produzir dados, mas que compreendam e transformem as realidades da região.
A cada bolsista, a cada projeto multicêntrico, a cada comitê de ética fortalecido, a rede contribui para algo maior: construir políticas de saúde mais justas, baseadas em evidências e mais próximas das pessoas.
“Queremos avançar em políticas de saúde equitativas e colaborativas na América Latina”, sintetiza Buitrago.
Dailyn traduz isso para sua experiência pessoal: “A bolsa do NIHR me permitiu crescer como pesquisadora, mas, acima de tudo, me deu a certeza de que a ciência pode iluminar o que geralmente permanece nas sombras: a vida e os direitos das populações mais esquecidas”.
A ética como bússola
Se há um conceito que atravessa cada testemunho, é a ética. Em um continente onde vários países carecem de políticas formais sobre pesquisa com seres humanos, ela se torna uma urgência.
Para Buitrago, a ética é a forma de proteger a dignidade e os direitos de populações diversas e, muitas vezes, vulneráveis. Garante práticas justas e transparentes e fortalece a confiança da sociedade na ciência.
Dailyn concorda, mas leva o conceito a um terreno mais concreto: os comitês de ética. Afirma que não devem ser vistos como órgãos que impõem normas de cima para baixo, mas como colaboradores que ajudam a desenvolver projetos de maneira ética e respeitosa.
“Devem ser espaços de apoio, não de punição”, enfatiza.
Impacto na Bolívia: além da medicina
O retorno à Bolívia carrega para Dailyn uma grande responsabilidade. Ela deseja contribuir para o fortalecimento do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa e, a partir daí, abrir um debate mais profundo sobre como os estudos em saúde são conduzidos.
“Muitas vezes, a medicina vê apenas a doença, mas não o contexto social do paciente. A pesquisa ética pode nos ajudar a mudar essa perspectiva, incorporando o contexto, as condições de vida e as vulnerabilidades”, reflete.
O desafio está lançado e, para o NIHR LATAM e para Dailyn, esta é a oportunidade de um novo começo. Mas essa será parte de uma nova história.